Opinião

Postal de Natal

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Postal de Natal

O meu postal de Natal escrito após ter estado em Missão de Cooperação em  Angola no período da guerra civil

Paizinho leva-me para Portugal, repetia invariavelmente uma criança negra, que a guerra civil de angola, lançou para as sujas sarjetas da vida da grande cidade capital de seu nome Luanda.

À semelhança do “painho”, diminutivo com que era carinhosamente conhecido entre todos os cooperantes, centenas de miúdos sem pai, sem mãe, sem família, pululavam quais pardais sem eira nem beira, por toda a cidade, sorrindo como forma de afastar a adversidade das suas sofridas e miseráveis existências, tentando sobreviver como podiam, atacando famintos os já de si escassos restos do imenso lixo que atolava e infestava toda a cidade. Sim o cheiro de África que tantas saudades traz aos retornados, não era, à época, mais que um cheiro nauseabundo onde se misturavam os cheiros do lixo e dos esgotos.
Adoptei o paizinho, cujos pais o miúdo desconhecia por ter por eles sido abandonado ainda mal andava, nos meses angustiados que passei em Angola. O paizinho dormia na parte de trás do jeep, tendo-o sempre impecavelmente arranjado e limpo todas as manhãs quando nos deslocávamos para o Grafanil, onde ensinávamos hipocritamente os Generais do regime, responsáveis pela infindável guerra civil que assolou o país , em nome duns pretensos interesses de Portugal, que se deveria ter mantido neutral, como lhe competia, numa guerra que não era mais dele.

Paizinho não te esqueças de me levar para Portugal, Paizinho não te esqueças de me levar para Portugal…. Esta frase repetida sempre que nos via, aliada à alegria estampada no rosto da  pobreza de quem a repetia incessantemente  para ganhar algum dinheiro entre os cooperantes, calou sempre fundo na minha dilacerada alma, e a imagem desse miúdo e de tantos outros enjeitados e estropiados pela interminável guerra, ainda hoje me persegue, quando me recordo da pobreza de angola e do contraste tremendo entre a classe política, que se confundia com a militar, e o miserável e faminto  povo, que se arrastava pela cidade sem rumo.
Paizinho quando me levas para Portugal, paizinho quando me levas para Portugal, paiz….

Nuno Pereira da Silva

Coronel de Infantaria na Reserva